A lembrança do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) homenageando o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra – alvo de uma série de acusações de tortura durante a ditadura militar – durante a votação da admissibilidade do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, é apenas um dos episódios reveladores sobre a legitimidade dada à defesa da ditadura militar.
Na época, Bolsonaro enfrentou no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar uma acusação de quebra do decoro parlamentar. O colegiado rejeitou admissibilidade da representação do Partido Verde (PV) contra o então deputado federal por 11 votos a 1.
“Bolsonaro homenageou um torturador que comandava sessões de tortura, que chegava a colocar ratos vivos na vagina de mulheres. Ele homenageou essa pessoa no plenário da Câmara e nada aconteceu”, critica Natália Bonavides, deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT). “Sem dúvida a gente tem que relacionar isso com a luta para que não se anistiem os golpistas de 2023.”
A parlamentar é também advogada e mestre em Direito Constitucional e integra a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. A instituição é responsável por entregar as certidões de óbito retificadas às famílias das vítimas, retomar as atividades de identificação dos remanescentes ósseos da Vala Clandestina de Perus e as buscas por corpos de desaparecidos em diversas regiões do Brasil, incluindo Araguaia, Rio de Janeiro e Pernambuco, por exemplo.
A CEMDP foi extinta durante o governo Bolsonaro e teve seus trabalhos retomados somente em agosto deste ano.
“Quando Bolsonaro era deputado federal, na porta do seu gabinete tinha um cartaz dizendo que quem procura osso é cachorro, numa grave ofensa a essas famílias que procuram os restos mortais”, lembra a parlamentar.
Segundo Bonavides, falhas nas ações de justiça de transição e a condescendência da direita aos acampamentos golpistas, por exemplo, fazem parte do cenário que culminou com o plano de golpe de Estado desvelado pela Polícia Federal nas últimas semanas. O relatório da PF entregue ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes aponta que o ex-presidente teria planejado, atuado e “que teve o domínio de forma direta e efetiva” do plano de golpe. O mesmo não ocorreu por fatos “alheios à vontade” do ex-presidente, uma vez que não teria sido apoiado pelos comandantes do Exército e da Aeronáutica na época, além da maioria do Alto Comando do Exército, conclui a investigação.
Já a atuação enfática do STF sobre as investigações dos organizadores e financiadores dos atos golpistas de 8 de janeiro gerou reação de parlamentares da extrema direita contra a Corte. Medidas como um pacote de projetos que limita as ações dos ministros do Supremo e ampliam as hipóteses de pedidos de impeachment dos magistrados servem, na visão de Natália, para discordar de “decisões do STF que buscaram, por exemplo, enfrentar as máquinas de fake news e os gabinetes de ódio”.
Natália Bonavides é a convidada desta semana do BdF Entrevista. Na conversa ela fala também sobre os rumos da esquerda após as eleições municipais de 2024, além de projetos votados na Câmara e a disputa pela presidência da Casa.
Eleições e a defesa dos trabalhadores
Bonavides foi uma das poucas candidatas da esquerda a chegar ao segundo turno nas eleições deste ano. O pleito municipal teve o centrão e a direita como os vencedores: partidos como o PSD de Gilberto Kassab, MDB e PP conseguiram eleger o maior número de candidatos à prefeitura. Candidatos da esquerda chegaram ao segundo turno em 13 capitais. O PT conseguiu aumentar de 184 para 252 o número de prefeitos, enquanto o Psol não conquistou nenhuma prefeitura.
Para além da disputa ideológica, Bonavides aponta que o uso criminoso de fake news e de abuso do poder econômico por partidos da direita fez toda a diferença nos resultados eleitorais. “É importante a gente reconhecer que a direita foi quem mais avançou nessas eleições, mas o que a gente coloca é o uso criminoso das estruturas, que na verdade é a prática recorrente da direita de abusar do poder econômico no processo eleitoral desde a redemocratização.”
A prática e a banalização de práticas que podem ser consideradas crimes eleitorais foi um dos destaques das eleições deste ano. Bonavides chegou, por exemplo, a receber uma ameaça de morte por meio de um áudio enviado em um grupo de WhatsApp. O suspeito foi identificado pela Polícia Federal. “A compra de votos foi algo absolutamente escrachado nessas eleições, foi algo absolutamente naturalizado. O assédio eleitoral, e aqui eu não me refiro só em empresas e coisas do tipo, mas aos terceirizados que trabalham nas prefeituras. Outro crime é do abuso do poder midiático, de veículos de comunicação que faziam a campanha escrachada e aberta para o outro candidato”, enumera.
Nesse sentido, ela lembra que o PL das Fake News, como ficou conhecido o PL nº 2630/2020, que trata da regulamentação das redes sociais, tramita no Congresso a passos lentos. “Infelizmente, eu não acho que as respostas institucionais de forma geral estão à altura, não é à toa que isso aconteceu em todo o Brasil de forma generalizada.”
Apesar do bombardeamento de notícias falsas, crimes eleitorais e das diferenças ideológicas, Bonavides avalia que a estratégia da esquerda deve ser de reafirmar as pautas que unem a defesa dos trabalhadores com as lutas de gênero, raça e classe. Para ela, a esquerda perde ao se aproximar do centro. “Eu discordo muito da tese de que é indo ao centro que a esquerda vai ter um desempenho eleitoral melhor. Quando a gente trata de uma luta política mais ampla, para além da eleitoral, é que isso se torna ainda mais forte, porque o que me parece é que a esquerda perde força na medida em que se ausenta das lutas cotidianas do povo trabalhador.”
Exemplo disso, para ela é o seu desempenho no segundo turno, com 44% dos votos. “Apesar de termos tido uma derrota eleitoral, a nossa avaliação é que politicamente foi um momento muito importante tanto para o partido, quanto para a esquerda, para o campo progressista e democrático da cidade. A última vez e única, aliás, que o PT tinha chegado no segundo turno em Natal, tinha sido em 1996, quando a hoje governadora Fátima Bezerra foi candidata à prefeitura. Então faziam 28 anos que o PT não ia para o segundo turno, e nós tivemos também a maior votação da história do PT.”
Dentre os fatores que contribuíram para isso, ela destaca que o partido esteve unido, sem dissonância, na hora da definição da candidatura, o que permitiu um início antecipado de trabalhos na campanha. “Nós buscamos fazer uma campanha que tivesse uma marca de defesa dos interesses do povo trabalhador que tivesse em termos de atividades, é um perfil de ser muito de rua, muito pé no chão.”
A discussão da proposta de emenda à Constituição (PEC) 221/19, que propõe a redução da jornada de trabalho e mobilizou trabalhadores do país em torno do fim da escala 6×1, é uma amostra da necessidade da esquerda manter-se próxima às demandas dos trabalhadores. “O que a gente vê é que na verdade as pautas do povo trabalhador seguem tendo um apelo muito forte e talvez esteja faltando a gente estar muito mais próximo do povo para debater essas pautas.”‘