Relatório identifica derrubadas de áreas nativas na Amazônia e no Cerrado próximas aos silos das exportadoras do grão
Por Texto: Rafael Oliveira | Edição: Giovana Girardi – Agência Pública
Fazendas brasileiras que produzem soja na Amazônia e no Cerrado foram flagradas com desmatamentos recentes, levantando a suspeita de que o grão enviado para a Europa pelas principais exportadoras multinacionais, como Cargill e Bunge, possa estar contaminado com desmatamento. É o que aponta um relatório da Mighty Earth, obtido com exclusividade pela Agência Pública, lançado nesta quinta-feira (14).
O estudo identificou derrubadas de áreas nativas e degradação que somam quase 60 mil hectares ocorridas entre setembro e dezembro de 2023 em propriedades que produziram soja na safra 2022/2023 e estão localizadas em um raio de 50 km dos armazéns dos principais exportadores de soja do país.
Além de Cargill e Bunge, a lista inclui Amaggi, ADM, Cofco, LDC e ALZ Grãos. O recorte é baseado no raio que as próprias empresas informam como área onde a soja exportada é colhida e demonstra potencial contaminação das cadeias de suprimentos da soja ligadas a essas companhias.
Por que isso importa?
- As principais multinacionais exportadoras de soja se comprometeram, por meio da Moratória da Soja, a não comprar o grão plantado em áreas desmatadas na Amazônia para esse fim. Relatório identificou desmatamentos recentes entre os fornecedores
A partir da análise de dados do sistema Deter – serviço de monitoramento rápido do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que fornece alertas de desmatamento a fim de orientar a fiscalização –, os pesquisadores identificaram quase 8,5 mil hectares de área desmatada em propriedades privadas entre setembro e dezembro do ano passado na Amazônia. O montante equivale a 20,8% de todos os alertas que foram gerados pelo Deter na Amazônia Legal no período. Foram observados também nessas áreas 21,5 mil hectares degradados.
O relatório “Rapid Response #2 – Soja: Monitorando o desmatamento nas cadeias brasileiras de suprimentos” foi lançado nesta quinta-feira (14) durante evento sobre o Cerrado promovido em Paris pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), com apoio da Mighty Earth. A organização indígena está promovendo uma série de encontros no continente europeu com o objetivo de incluir o Cerrado na Regulação da União Europeia Antidesmatamento.
O Brasil foi responsável por cerca de 51% dos grãos de soja e de 46% do farelo de soja exportados para os cinco principais importadores do produto na Europa (Holanda, Reino Unido, França, Espanha e Alemanha) em 2022, de acordo com o levantamento. Considerando os dois tipos de soja, foram quase 11 milhões de toneladas exportadas para os cinco países.
Segundo João Gonçalves, diretor sênior do Brasil na Mighty Earth, a intenção da organização é evitar que desmatamentos relativamente pequenos se ampliem e demandar que “as empresas passem a monitorar a sua produção de fornecedores diretos e indiretos de uma forma mais efetiva, para evitar que o desmatamento aconteça”.
“O nosso objetivo [com o Rapid Response] é identificar casos recentes de desmatamento relacionados com as cadeias de suprimentos da soja e da carne e, com base nesses casos, pedir a ação imediata das empresas envolvidas, principalmente dos grandes players globais do sistema de alimentação. Nós queremos que as empresas, ao identificarem possíveis casos de contaminação com desmatamento, bloqueiem e cortem relações comerciais com essas fazendas produtoras”, explica.
Apesar de não ser possível afirmar que houve plantio de soja imediatamente após os desmatamentos, a devastação recém-ocorrida em propriedades produtoras do produto contamina a produção e fere a Moratória da Soja na Amazônia, acordo que na prática proíbe a compra de soja plantada em áreas desmatadas pós-2008 no bioma amazônico pelas grandes traders.
Em 2022, o Brasil contribuiu com 51% da exportação de grãos de soja e 46% do farelo de soja para países como Holanda, Reino Unido, França, Espanha e Alemanha
A maior parte dos desmatamentos na Amazônia registrados no relatório está em Mato Grosso: 7,6 mil hectares. É em território mato-grossense que estão os municípios com maior área desmatada: Nova Santa Helena (2.462 ha), Porto dos Gaúchos (1.042 ha), Cláudia (798 ha), Brasnorte (601 ha) e Nova Maringá (569 ha).
“O principal estado produtor de soja no Brasil é o Mato Grosso, que teve 27% da produção de soja cultivada no país em 2023. E, consequentemente, nesse estado, a gente identificou os cinco maiores municípios com taxas de desmatamento. Isso mostra a ingerência da plantação de soja no Mato Grosso e que políticas mais eficazes devem ser tomadas”, aponta Gonçalves, da Mighty Earth.
Já no Cerrado, o relatório aponta o desmatamento de 26,9 mil hectares entre setembro e dezembro de 2023 em propriedades próximas a silos e com histórico de produção de soja. A maior parte, 18,4 mil hectares, foi destruída nos estados que compõem o Matopiba. Além disso, quase 4 mil hectares de Cerrado foram desmatados em Mato Grosso. Os municípios com maior destruição foram Barreiras (BA), com 3.890 ha; Riachão (MA), com 1.369 ha; Guaraí (TO), com 1.330 ha; Brasnorte (MT), que também aparece no topo do desmatamento da Amazônia, com 1.097 ha; e Sebastião Leal (PI), com 995 ha.
Estudos de caso
O estudo da Mighty Earth traz sete estudos de caso, focando em três propriedades na Amazônia e quatro no Cerrado. Os casos abrangem pouco mais de 7,2 mil hectares de desmatamento ou degradação recente. Além disso, as fazendas envolvidas têm 37,4 mil hectares de vegetação nativa remanescente que demandam proteção.
Entre as fazendas analisadas estão propriedades cujos donos têm histórico de embargos e multas ambientais do Ibama. Uma das fazendas pertence à Radar Propriedades Agrícolas. No ano passado, investigação da Pública em parceria com a OCCRP (Organized Crime and Corruption Reporting Project) com base em documentos vazados mostrou a ligação da Radar com acusados de grilagem de terras no Matopiba.
Após a detecção da devastação nas propriedades, a organização entrou em contato com as multinacionais de soja potencialmente associadas às fazendas, demandando que elas identificassem e monitorassem os casos em seus bancos de dados de fornecedores. Em resposta à Mighty Earth, Ammagi, Cargill, Cofco e LDC informaram estar monitorando ou ter iniciado investigações em alguns casos, negando relações comerciais com as demais propriedades. Já a ADM, a ALZ e a Bunge não reconheceram conexões comerciais com as fazendas analisadas no relatório. Leia as respostas das empresas na íntegra.
A Mighty Earth destaca, porém, que a falta de monitoramento integral das cadeias de abastecimento da soja impede que seja verificada uma relação indireta entre as fazendas que tiveram desmatamentos recentes e as traders em questão.
“Nós instamos Amaggi, Cargill, Bunge, ADM, Cofco, LDC e ALZ Grãos a divulgarem prontamente a origem de seus produtos de soja do Brasil em uma plataforma pública, incluindo listas de todos os seus fornecedores diretos e indiretos, com a proporção de soja obtida de uma cadeia de abastecimento verificada como Livre de Desmatamento e Conversão (ZDC). Além disso, pedimos que enviem casos de desmatamento e conversão a um mecanismo público de reclamação e suspendam as compras de fornecedores diretos ou indiretos e fazendas envolvidas em desmatamento ou desmatamento de vegetação nativa. Uma ação urgente é necessária, especialmente nos municípios com as maiores taxas de desmatamento ilustradas em nosso relatório entre setembro e dezembro de 2023”, diz o estudo.
Em dezembro do ano passado, a Mighty Earth lançou durante a 28ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP28) o primeiro relatório Rapid Response, focado no desmatamento relacionado à indústria da carne. O estudo, feito em parceria com a AidEnvironment e a Repórter Brasil, vinculou mais de meio milhão de hectares de desmatamento na Amazônia e no Cerrado com produtos de carne bovina produzidos pela JBS, Marfrig e Minerva e vendidos em supermercados brasileiros dos grupos Carrefour, Pão de Açúcar e Sendas (Assaí).
Créditos de imagens
Reportagem originalmente publicada na Agência Pública