O presidente "imbrochável" nega o papel das mulheres na independência e no desenvolvimento do Brasil

O presidente "imbrochável" nega o papel das mulheres na independência e no desenvolvimento do Brasil

História mostra que Princesa Leopoldina, Maria Quitéria, Maria Felipe, Freira Angélica e muitas outras mulheres contribuíram para nossa Independência e para o nosso desenvolvimento como nação

Num discurso misógino, machista e de rebaixamento do papel da mulher apenas ao de “princesa e provedora do lar”, o presidente Jair Bolsonaro transformou a festa do Bicentenário da Independência do Brasil num horroroso e cafona palanque para sua campanha à reeleição. Mais uma vez Bolsonaro mostrou falta de compostura no cargo, e foi de novo desrespeitoso com as mulheres, incitando seus apoiadores a aclamá-lo como imbrochável!? Como assim?!

O presidente da República Jair Bolsonaro e a Primeira-dama do Brasil , Michelle Bolsonaro, participam do Desfile cívico-militar de 7 de Setembro de 2022 e comemoração do Bicentenário da Independência do Brasil -foto Agência Brasil

A historiografia oficial omite o papel das mulheres na Independência, mas isto está aos poucos mudando. Novas pesquisas motras que muitas outras mulheres lutaram, inclusive pegando em armas, para que o Brasil fosse livre de Portugal.

Reportagem da agência alemã de notícias Deustche Welle, cita nomes, que não foram sequer lembrados pelo presidente Jair Bolsonaro hoje, no bicentenário da nossa independência. Destacam-se neste processo de ruptura com corte portuguêsa e construção de uma nova identidade nacional a princesa Leopoldina, esposa do príncipe e futuro imperador Dom Pedro I, as baianas Maria Quitéria, Maria Felipa e freira Joanna Angélica, que são heroínas da libertação do Brasil de seus laços coloniais com Portugal.

Ao invés de falar dos heróis da nossa história, o mandatário brasileiro pronunciou um discurso misógino,

“A participação das mulheres na independência do Brasil” foi o título do curso oferecido, de forma gratuita e on-line, no mês passado pela historiadora Giovanna Trevelin — pesquisadora ligada à Universidade Estadual de Feira de Santana e divulgadora científica.

Não se trata de um esforço isolado, esse reconhecimento do papel feminino em episódio tão importante para a história do Brasil. Mas sem dúvida algo que ganha corpo mais consistente no ano em que se celebra o bicentenário da independência.

A ressignificação da participação das mulheres vem sendo tratada em obras recentes, como o livro Sobreviventes e Guerreiras: Uma Breve História da Mulher no Brasil de 1500 a 2000, da historiadora e escritora Mary Del Priore, e a biografia D. Leopoldina – A história não contada: a mulher que arquitetou a independência do Brasil, do pesquisador e escritor Paulo Rezzutti. Além disso, cada vez mais universidade brasileiras contam com projetos de pesquisa que atentam para temas correlatos, como o Grupo Nina Simone, do qual faz parte Trevelin.

A historiadora conta que é perceptível o desconhecimento quanto às “personagens femininas que participaram de um processo tão importante para a nossa história”. E isso a motivou a desenvolver o curso on-line, já que o tema a “afeta diretamente, como mulher, brasileira, historiadora e pesquisadora”.

Entre todas essas pesquisas, alguns nomes em comum acabam sendo destacados. São o da nobre Leopoldina (1797-1826), que se tornaria a primeira imperatriz do Brasil, da combatente Maria Quitéria (1792-1853), da pescadora Maria Felipa (?-1873) e da freira Joanna Angélica (1761-1822).

7 de Setembro – Retrato da sessão de 2 de setembro de 1822 do Conselho de Estado do Brasil, que precedeu a declaração da Independência do Brasil. – Georgina de Albuquerque, 1922 / Acervo da FBN

Contudo, pesquisadores acreditam que muitas outras mulheres estiveram envolvidas nas lutas pela independência brasileira. O sumiço de seus nomes nos relatos deste episódio é resultado justamente da lógica machista de um tempo em que a atuação delas era omitida dos registros, somado a uma historiografia que as ignorava.

“É complicado falar nas principais mulheres que participaram do processo de independência porque ele não foi um processo isolado e centralizado só em uma mulher ou em um grupo de mulheres”, comenta Trevelin. “Hoje, oficialmente, algumas delas têm mais destaque do que outras por conta de uma prioridade de documentação histórica e da história que se escolhe contar formalmente, que aprendemos nas escolas, e que acaba se popularizando pelas mídias como novelas e séries, por exemplo. Mas isso é uma escolha.”

Rezzuti destaca que a história, durante muitos séculos, foi escrita exclusivamente por homens. “Mesmo após as mulheres terem acesso ao estudo, a maior parte delas repetiam conceitos e ideias anteriores que partiam das premissas do pensamento patriarcal. Essas coisas levaram tempo para mudar, e a história das mulheres passou a ser contada de maneira mais sistemática e intensa recentemente.”

Del Priore acredita que outros nomes ainda vão ser descobertos. “A questão é que há pouquíssima documentação sobre mulheres nesse período. Sabe-se que algumas atuavam como espiãs e levando comida e bebida aos soldados do imperador, mas seus nomes não são conhecidos”, ressalta ela. “Os historiadores estão exumando documentos para descobrir quem foram essas figuras.”

Professora na Universidade Federal de São Paulo, a historiadora Andréa Slemian lembra que é preciso contextualizar o fenômeno dentro daquele período histórico. “O momento da independência é de ebulição política, que se deu em meio ao fim da censura régia sobre os escritos, com a proliferação de uma série de textos públicos”, afirma ela. “E vemos a participação de mulheres ou pessoas que assinavam com codinomes femininos. Até porque, nesse momento em que os valores patrióticos vêm à tona, ressaltou-se o papel das mulheres na antiguidade, desde as gregas e as romanas, na luta pelos valores de suas cidades.”

Segundo a pesquisadora, quando esses valores são “recuperados pela imprensa”, há um incentivo ao “engajamento das mulheres na luta pela independência”.

As mais destacadas

Dos nomes consagrados, todas estiveram ligadas diretamente a episódios da luta pela independência. A freira Joanna Angélica, assassinada em fevereiro de 1822, era a responsável pelo Convento da Lapa, em Salvador. “Foi a primeira mulher vítima do processo de Independência do Brasil”, pontua Rezzutti.

Freira Joanna Angéilica foi morta por tropas portuguesas em Salvador

Na ocasião, soldados portugueses queriam invadir o claustro religioso feminino em busca de munição e acreditando que ali estariam escondidos os contrários ao comando militar português. Ela enfrentou, bloqueando a entrada da casa. E foi morta com um golpe de baioneta.

Maria Quitéria, por sua vez, travestiu-se de homem para integrar as tropas brasileiras contra as portuguesas, nas batalhas ocorridas na Bahia em setembro de 1822. “Mesmo depois de ter sua verdadeira identidade revelada pelo pai, seu comandante não a dispensou, entre outras coisas porque ela atirava muito melhor que muitos outros recrutas”, acrescenta Rezzutti.

Maria Quitéria pegou em armas para ajudar a expulsar os portugueses da Bahia

Já Maria Felipa era uma negra líder comunitária, pobre e iletrada, que vivia na Ilha de Itaparica, também na Bahia. Ela teria engajado outras mulheres da ilha para lutar contra os portugueses. “Naquele contexto, elas atuavam em grupos, mas não se sabe hoje o nome delas. Muitas dessas histórias permanecem e ganham força a partir de uma tradição oral, e são de muita relevância para entendermos que outras narrativas, marginalizadas até aqui, também foram decisivas na independência do Brasil”, frisa Trevelin.

“Conta-se que Felipa pedia às mulheres bonitas da ilha para que passeassem pela praia para, assim, atrair os soldados portugueses. Ela se aproveitava da aproximação dos barcos para incendiá-los”, diz Del Priore.

Maria Felipa, pescadora que se arriscou alimentado as tropas de brasileiros que combatiam Portugal

Embora tardios, alguns reconhecimentos públicos vêm aparecendo, com essas mulheres emprestando nomes a logradouros e sendo alvo de homenagens. Professora da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília, a jurista Eneida Obage de Britto Taquary lembra que Joanna Angélica, Maria Quitéria e Maria Felipa tiveram seus nomes inscritos no chamado Livro de Heróis e Heroínas da Pátria em 26 de julho de 2018, mediante lei federal.

“Há um pequeno resgate do papel dessas mulheres. E, certamente, a partir das obras que hoje têm recontado a história delas, vamos poder conhecer cada vez mais sobre a participação da mulher em vários processos importantes como foi a independência do Brasil”, avalia Taquary.

Protagonismo de Leopoldina

A participação da primeira mulher do então príncipe regente do Brasil — que ser tornaria o imperador após a independência — no processo histórico tem sido revisitada intensamente nos últimos anos. É praticamente unanimidade o reconhecimento de seu papel como artífice da independência, já suas ideias foram registradas em cartas.

Por outro lado, esse discurso acabou fazendo nascer um boato: o de que ela teria assinado um decreto de independência. Para o biógrafo Paulo Rezzutti, isso é “fake news histórica”.

“Leopoldina participou de todo o processo, desde todas as questões que levaram ao Dia do Fico, do qual ela foi uma das principais articuladoras, até a sua regência, no lugar do marido, durante a qual ela enviou cartas para ele em São Paulo aconselhando-o a romper definitivamente com Portugal”, ressalta ele, sobre os antecedentes do Sete de Setembro.

Ele conta que quando Pedro partiu para São Paulo, em agosto de 1822, em viagem, Leopoldina ficou como princesa regente. “Mas não com plenos poderes, como podemos ver no decreto de sua nomeação”, ressalta. “Ela não podia deliberar nada sem a concordância do marido. “

“No entanto, ela presidiu o conselho de Estado convocado no Palácio de São Cristóvão a 2 de setembro de 1822, para discutir as notícias vindas de Portugal que pediam o retorno imediato do restante da família real que havia ficado no Brasil para a Europa”, acrescenta. “Os despachos e as cartas produzidos durante essa reunião […] instigaram dom Pedro para que ele fizesse logo a independência, antes que fosse tarde. “

“Rio de Janeiro, 2 de setembro de 1.822

Pedro,

O Brasil está como um vulcão”.

Mais direta, impossível. Era mais do que uma correspondência de amor. O início da carta de Maria Leopoldina da Áustria, então com 25 anos de idade, para o marido, o imperador D.Pedro I, manifestava angústia e um chamado para uma transformação do Brasil. Na verdade, uma separação (de Portugal).

“Meu coração de mulher e de esposa prevê desgraças se partirmos agora para Lisboa. (…) O Brasil será em vossas mãos um grande país. O Brasil vos quer para seu monarca. Com vosso apoio ou sem vosso apoio, ele fará sua separação”

Para ela, o fruto (a independência) estava maduro.

“O pomo está maduro, colheio-o já, senão apodrecerá. Já dissestes aqui o que ireis fazer em São Paulo. Fazei, pois”

Para três biógrafos e pesquisadores da vida de Leopoldina, consultados pela Agência Brasil,  a princesa atuou de diferentes formas que foram primordiais para que ocorresse a Independência do Brasil.

Os historiadores Mary Del Priore, Clóvis Bulcão e Paulo Rezzutti entendem que ações de bastidores, com autoridade intelectual diferenciada, e sentimento de preservação do trono, resultaram para que o dia 7 de setembro tivesse entrado para a história.

Daí para dizerem que ela teria assinado um decreto de independência, foi um pulo. “É um boato, e apenas isso”, contextualiza Rezzutti.

“Primeiro que o Brasil não tem uma declaração de independência, como os Estados Unidos; segundo que a ata do Conselho de Estado de 2 de setembro presidido por Leopoldina nem menciona a questão da independência, a ata é publica, pode ser consultada online no site do governo federal. Mas nada disso diminui o envolvimento de Leopoldina em todo o processo, só não há uma assinatura dela em nada mostrando que teria sido ela e não dom Pedro quem decidiu a independência.”

Mais mulheres

Aos poucos, outras participações femininas também tem sido descobertas e melhor relatadas. Em suas pesquisas, a historiadora Trevelin deparou-se, por exemplo, com relatos das chamadas “mulheres de Saubara”. No município baiano, mulheres de uma irmandade chamada Caretas do Mingau teriam lutado diretamente contra os portugueses.

Tradição permanece até hoje em Saubara

“A história mais popular, e que ganhou força na região, é que essas mulheres se vestiam de branco e saíam às ruas para assustar os portugueses, que fugiam achando que elas eram almas penadas. E assim elas conseguiam levar comidas e armamentos para seus filhos e maridos que lutavam contra as tropas, o que justificava as panelas de mingau na cabeça”, relata ela.

Contudo, Trevelin acredita que a organização teria sido anterior às lutas e elas já realizavam um cortejo tradicional com as panelas de mingau na cabeça para enaltecer a importância do alimento, base da alimentação local daqueles tempos.

“Também existem grupos, como o das Senhoras Bahianas, que peticionaram a Leopoldina em agradecimento a dom Pedro ter ficado no Brasil e reconhecendo a importância dela no processo, ou ainda o das Senhoras Paulistas, que também se dirigiram a Leopoldina durante o processo da independência”, acrescenta Rezzutti.

Outra que é pouco lembrada é a pintora, escritora e historiadora inglesa Maria Graham (1785-1842), ligada à família imperial brasileira porque foi responsável pela educação de uma das filhas de Pedro I e Leopoldina. ” [Ela] se destacou como a voz de uma mulher em meio a uma historiografia predominantemente masculina”, analisa Trevelin. 

” [A inglesa] escreveu um diário sobre o Brasil, onde contou como foi o processo de independência, escrevendo inclusive a respeito de Maria Quitéria. Assim, se consagrou como uma importante fonte a respeito da temática, com uma história narrada pela perspectiva feminina, incomum no período.”

Estudo_para_o_desembarque_de_Dona_Leopoldina
7 de Setembro – Estudo_para_o_desembarque_de_Dona_Leopoldina – Reprodução/D. Leopoldina; a história não contada/ Paulo Rezzuti

Para a professora Mary Del Priore, a princesa regente foi certamente uma das personagens “mais cativantes desse grande momento”, afirma a autora do livro A Carne e o Sangue: A Imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I e Domitila, a Marquesa de Santos.

Para o escritor Clóvis Bulcão, autor de Leopoldina: a Princesa do Brasil, o “Sete de Setembro” ocorre por conta das cartas que vêm do Rio de Janeiro, tanto encaminhadas por José Bonifácio como pela princesa. Davam sinal verde para o que parecia inimaginável naquele reino: uma independência.

Confira abaixo o Momentos da Independência, da TV Brasil


Com informações da DW e Agência Brasil