Por Ricardo Thomé*, no Jornal da USP
“O Brasil ainda é a Rua Maria Antônia.” Foi a partir dessa premissa que a cineasta Vera Egito, formada em Audiovisual pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, roteirizou e dirigiu o filme A Batalha da Rua Maria Antônia, em cartaz nos cinemas desde o dia 27 de março passado. O longa aborda o conflito ocorrido em 2 de outubro de 1968, na Rua Maria Antônia, no centro de São Paulo, entre estudantes da então chamada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP — ligados à União Estadual dos Estudantes (UEE) — e da Universidade Mackenzie, vinculados ao CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Na ocasião, o estudante secundarista José Carlos Guimarães foi morto com um tiro na cabeça. O prédio da USP foi invadido e, posteriormente, fechado pelo regime. Depois de 57 anos, com o País vivendo tensões políticas recentes, a diretora entende que parte do conflito e da divisão presentes naquele conflito se mantém até hoje.
Realidade, com um pouco de ficção
A trama do filme se desenrola ao longo das 24 horas de conflito, entre os dias 2 e 3 de outubro de 1968, e é dividida em 21 planos-sequência — técnica de filmagem que consiste na gravação de uma cena sem cortes —, o que desperta no espectador a sensação de estar vivendo aquele momento com os estudantes, em contagem regressiva. As 21 cenas diferentes acabam por fazer referência, também, aos 21 anos de ditadura civil-militar vividos pelo Brasil entre 1964 e 1985. A diretora revela, porém, que nem o formato de planos-sequência nem o número de cenas foi pensado inicialmente. “É um filme de múltiplos olhares, com várias personagens e muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo. E foi aí que eu entendi que eu queria que as pessoas se sentissem lá dentro, como num rasgo temporal”, diz Vera. Essa percepção moldou, inclusive, a filmagem da obra, que foi feita com um rolo de filme de 16 milímetros em preto e branco, que era a câmera documental utilizada na época da batalha. “Essa estética vem dessa vontade de estar lá naquele evento como um estudante em 1968, em tempo real e no calor do momento”, completa a cineasta.

A cineasta Vera Egito – Foto: Cataleirxs/Wikipedia
Embora a obra seja inspirada em fatos e tenha o objetivo de retratá-los, não se trata de um documentário ou de uma biografia. As personagens e suas histórias são fictícias, e tiveram a construção feita a partir da coleta de depoimentos de participantes do evento, como conta a diretora: “Eu conversei com o José Dirceu, que era presidente da UEE naquele momento, com o professor Franklin Leopoldo e Silva, que era aluno de Filosofia na época da batalha e hoje é professor titular da USP, e o fotógrafo Hiroto Yoshioka, que era estudante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e foi responsável por fazer várias fotos da batalha”. As fotos de Yoshioka aparecem nos créditos do filme.
Apesar de as personagens não serem reais, algumas fazem referência a figuras que viveram a Batalha da Rua Maria Antonia. Benjamin (Caio Horowicz) é uma clara alusão a José Dirceu, enquanto Ângela (Isamara Castilho) é inspirada na filósofa socialista estadunidense Angela Davis (1944). Além de se basear em relatos individuais, a produção do filme também utilizou o livro Maria Antônia: Uma Rua na Contramão, da professora da FAU Maria Cecília Loschiavo dos Santos, para entender as subjetividades da época. A escolha por criar personagens se deu, segundo a diretora, para poder ter mais liberdade criativa. “Se você se compromete com uma biografia, precisa realmente levar aquilo a cabo, e só pode colocar no filme aquilo que comprovadamente aconteceu”, explica. Elementos como a urna de votação dos estudantes dentro do prédio da FFCL e a convocação de estudantes da Santa Casa – hospital localizado nas proximidades da Rua Maria Antônia – para auxiliarem no socorro aos feridos também aconteceram na vida real e foram transferidos para o filme.
Mais do que um conflito pontual, Vera vê a batalha da Maria Antônia como um símbolo da estrutura política latino-americana e brasileira. “Essa extrema direita que oprime e que radicaliza o discurso já existia ali e segue existindo. E as reações da sociedade civil organizada que mantém o sonho de um Brasil progressista seguem também.” A cineasta lembra que, na década de 2000, o País viveu um período em que os direitos institucionais e democráticos pareciam consolidados, mas com o impeachment da então presidente Dilma Rousseff, em 2016, houve uma ruptura nessa sensação. “Então a história da Rua Maria Antônia se provou tragicamente atual.”

José Dirceu, que em 1968 era presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE) – Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil


O fotógrafo Hiroto Yoshioka registrou em imagens a Batalha da Maria Antonia – Foto: Hiroto Yoshioka/Facebook

Hoje vice-reitora da USP, a professora Maria Arminda do Nascimento Arruda estudava Ciências Sociais na FFCL em 1968. Em entrevista no programa Cultura na USP, da Rádio USP, ela lembrou a importância, para a preservação da democracia, de filmes como A Batalha da Rua Maria Antônia e Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional neste ano. “O momento atual das sociedades é muito volátil. As opiniões mudam a cada segundo, nada é consistente. E isso leva ao esquecimento. Esses filmes têm um significado humano e político profundo. Falar da Maria Antônia é falar de um projeto libertário. E isso não pode nos abandonar em um período em que a democracia vive riscos”, disse Maria Arminda, enfatizando o caráter do cinema como espaço de memória e de resistência (ouça a íntegra da entrevista neste link).
Uma convivência fadada ao conflito
Coordenador editorial do Jornal da USP, o jornalista Luiz Roberto Serrano – formado pela ECA – estudava Engenharia Elétrica na Escola Politécnica em 1968 e participou da Batalha na Maria Antônia. Ele lembra que estava almoçando no Conjunto Residencial da USP (Crusp), na Cidade Universitária, quando foi alertado por colegas que uma batalha estava acontecendo na Rua Maria Antônia. “Nós paramos um circular interno da USP, ocupamos o ônibus e pedimos para o motorista ir para lá e dizer que havia sido forçado pelos estudantes — e na verdade tinha mesmo. Quando chegamos na Maria Antônia, era uma batalha campal: de um lado, o pessoal da USP na frente do prédio da Faculdade de Filosofia e, do outro lado da rua, o pessoal do Mackenzie, de uma posição mais alta, privilegiada, jogava coquetéis molotovs que às vezes caíam dentro do prédio. Politicamente, era uma convivência impossível”, relembra o jornalista.

O jornalista Luiz Roberto Serrano, que presenciou a Batalha da Maria Antônia – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Em A Batalha da Rua Maria Antônia, a personagem Ângela (na foto, em cena do filme) é inspirada na ativista estadunidense Angela Davis – Foto: Divulgação/A Batalha da Rua Maria Antônia
Serrano trata o acontecimento como “previsível”, num local amplamente dividido entre o CCC e os estudantes da USP e num período que já vinha sendo caracterizado por grandes manifestações políticas. Poucos meses antes, em junho, havia ocorrido, no Rio de Janeiro, a chamada Passeata dos Cem Mil, que aconteceu em resposta ao assassinato, em março daquele ano, de outro secundarista, Edson Luís de Lima Souto, pela Polícia Militar, após invasão ao Restaurante Calabouço, onde os estudantes protestavam contra a elevação dos preços das refeições.
A repressão a esses movimentos no Rio de Janeiro foi intensa, e em São Paulo não foi diferente. Após a batalha, os prédios da Rua Maria Antônia foram interditados e os cursos, transferidos para o a Cidade Universitária, na zona oeste da capital, no que Vera Egito identifica como uma estratégia do regime. “Até então, a USP estava espalhada pelo centro da cidade. Foi um projeto da ditadura desmobilizar os estudantes, tirando-os de lá. O campus da Cidade Universitária, onde eu estudei, é um projeto da ditadura, bem-sucedido, de isolamento”, considera a cineasta.
Não só os cursos, mas também a atividade política da Universidade foi transferida para a Cidade Universitária, afirma Serrano. “O pessoal de todo o Brasil que veio para o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna (SP), que foi desmantelado pela Polícia, concentrou-se no Crusp.” Ele recorda que, em 17 de dezembro de 1968, quatro dias após a assinatura do Ato Institucional número cinco (AI-5) — principal mecanismo de institucionalização da repressão na ditadura —, o Crusp foi invadido. “A Força Pública, a Guarda Civil e o Exército chegaram logo cedo e mandaram todo mundo descer. Eles nos prenderam no restaurante do Crusp, separando meninos e meninas. Aí vieram os ônibus da CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos) e levaram todos os homens para o presídio Tiradentes, que não existe mais”, conta. O então estudante da Poli passou uma noite no local e foi liberado, já que não tinha nenhuma anotação subversiva a seu respeito no Dops (Departamento de Ordem e Política Social). “No dia em que fui buscar minhas coisas no Crusp, praticamente só tinha minhas roupas, porque no dia da invasão eu joguei fora todos os meus livros, a maioria de teóricos de esquerda.”
Assista no link abaixo ao trailer oficial do filme A Batalha da Rua Maria Antonia.
O filme A Batalha da Rua Maria Antônia, dirigido por Vera Egito, está em cartaz em cinemas da capital paulista, incluindo o Cinema Reserva Cultural, o Cinesystem Frei Caneca, o Espaço Petrobras de Cinema, o Cinema Belas Artes, o Cine Satyros Bijou e o Circuito Spcine CCSP – Paulo Emílio. Mais informações estão disponíveis na página do filme na plataforma digital Instagram (@rua_maria_antonia).
* Estagiário sob supervisão de Roberto C. G. Castro, do Jornal da USP