DeepSeek: “Grandes soluções serão disruptivas’ e modelo do Ocidente não é verdade absoluta

A plataforma chinesa de inteligência artificial (IA) DeepSeek foi lançada há pouco mais de um mês, mas ainda está dando o que falar no cenário não apenas tecnológico, como também geopolítico.

Para aprofundar esse tema cada vez mais presente e relevante na sociedade contemporânea, o podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, traz pesquisadores que classificam a invenção como marco promissor no desenvolvimento de tecnologias mais inclusivas e sustentáveis.

O professor do Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Sistemas e Computação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Claudio Miceli conta que, embora já existissem versões de IA de código aberto, o que possibilita que qualquer um baixe o código e o execute, a versão chinesa é muito superior e utiliza muito menos recursos, provando ser possível ter qualidade sem explorar tanto os recursos naturais, como energia, como é o caso do padrão da OpenAI:

“Existem outros modelos aí surgindo. Inclusive, logo em seguida, a Alibaba soltou um modelo depois do DeepSeek, que teoricamente tem desempenho ainda melhor, e estão surgindo outros modelos. Todo mundo pode se beneficiar dessa competição. Isso para o modelo de negócio da OpenAI é extremamente disruptivo, porque eles se baseiam nesse segredo de mercado.”

Do ponto de vista geopolítico, o professor de ciência política e relações internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Henrique Carlos de Castro acredita que o DeepSeek representa ameaça real ao modelo capitalista de IA centrado em altos investimentos e lucros ainda maiores.

“É possível que o ser humano, da mesma maneira que constrói guerras, empresas e lucro, possa construir uma inteligência artificial que resolva problemas da sociedade, e não apenas das empresas.”

Logo, pondera ele, as reações de grandes potências que representam as grandes corporações, como os Estados Unidos, são imediatas.

“Isso já aconteceu no seu primeiro governo [do atual presidente dos EUA, Donald Trump], quando impôs sanções tecnológicas à China com o objetivo de retardar o desenvolvimento tecnológico em inteligência artificial da China. Suas ações são claramente imperialistas, o imperialismo clássico, do início do século XX, período em que ele se inspira para falar da Grande América.”

Outro ponto evidenciado pela nova IA é o desconhecimento do Norte Global em relação aos estudos e produções tecnológicas da China e de países fora do eixo ocidental:

“A China já vem com várias universidades crescendo vertiginosamente nos rankings internacionais. O incentivo da pesquisa chinesa vem tendo resultados muito interessantes em outras áreas da ciência da computação, como é o próprio caso da Huawei com o 5G […]. Em produção de artigos científicos, ela já lidera. Das dez universidades que mais produzem artigos científicos no mundo, sete são chinesas na área de tecnologia.”

Segundo o especialista, os salários também são muito competitivos nesse setor da China, com gigantes como Huawei, Xiaomi e Alibaba investindo pesado em tecnologia e em IA. O resultado, afirma Miceli, é fruto de investimento maciço em pesquisa e educação:

“Existe um plano de governo por trás que está incentivando o desenvolvimento tecnológico, incentivando a pesquisa e o ensino em tecnologia. […] há uma fé nas universidades na China, há uma fé nas instituições na China.”

E a IA do Brasil?

Os entrevistados também salientam que o Brasil precisa se espelhar com urgência nesse modelo adotado pela China e investir efetivamente em pesquisa e educação:

“O DeepSeek mostra é que a gente tem que sair desta ilusão de que tudo vai precisar de bilhões, e bilhões e bilhões de recursos. A gente talvez esteja mirando no alvo errado. O Brasil está cheio de grandes universidades, cheio de grandes pesquisadores, cheio de jovens com extremo potencial, tanto para desenvolver negócios como para pesquisa científica, e a gente tem oportunidade.”

“Para que a gente possa acompanhar — não estou dizendo nem liderar, mas pelo menos acompanhar e encontrar a nossa verdade —, a gente precisa que esse plano aconteça de uma forma mais incentivada pelo governo, […] a gente precisa de fé nas universidades, de um direcionamento, o Ministério da Ciência e Tecnologia e o Ministério da Educação precisam andar de mãos dadas em um plano de desenvolvimento institucional que leve essa questão da IA como resposta adequada”, opina Miceli.

Ele alertou que a falta de infraestrutura de comunicação e de independência tecnológica, hoje essenciais para o desenvolvimento, colocam o Brasil e o Sul Global cada vez mais em desvantagem em relação às grandes potências.

Castro corrobora com a visão de Miceli:

“O Brasil precisa atuar, precisa investir, precisa trabalhar de maneira muito forte para poder estar dentro da disputa. No entanto, infelizmente estamos fora do jogo, nós somos uma carta fora do baralho. Temos inteligência humana, excelentes pesquisadores, possibilidade de participar desse processo. No entanto, faltam investimentos estratégicos necessários para que nós possamos entrar no jogo.”

Castro lamenta que o Brasil ainda não tenha criado nenhum algoritmo que possa ensejar ferramentas importantes de desenvolvimento tecnológico, econômico e social. Nesse sentido, as alianças que o Brasil fizer vão determinar o sucesso ou o fracasso nessa disputa tecnológica que é a inteligência artificial.

“Isso tem a ver com a visão de modelo de desenvolvimento em que o Brasil quer investir, se um modelo mais ligado a um avanço capitalista completamente desmesurado ou à possibilidade de trabalhar com uma economia mais voltada para a resolução de problemas sociais.”

Viés ideológico

Miceli, que é especialista em sistemas ciberfísicos (sistemas autônomos independentes e distribuídos que coletam informações do ambiente e conseguem tomar decisões de forma autônoma), explica que o DeepSeek utiliza vários modelos rodando em paralelo, esquema chamado de Mixture of Experts (Mistura de Especialistas), em que só se utiliza o que tem melhor resultado. Com isso, dispensa grandes quantidades de GPUs (unidade de processamento gráfico que realiza cálculos matemáticos em alta velocidade), recursos computacionais e processamento.

Nessa disputa intelectual, ideológica e de poder onde a tecnologia está no centro, esses geradores de informação são automatizados, mas representam seus criadores, alertam os entrevistados:

“Onde você tem guerras de informação, guerras de narrativas que são geradas por bots […]. Nossa educação agora tem que ser formativa, com análise crítica da informação: como duvidar de forma séria e honesta de qualquer informação que chegue e como eu posso fazer a verificação dessa informação.”

Miceli lembra que as guerras de narrativas sempre existiram na história da humanidade; agora, com a tecnologia, elas foram apenas intensificadas em número e grau.

“Essas decisões muitas vezes são tomadas por algoritmos de inteligência artificial. Dentro de sistemas ciberfísicos você vai ter cenários como automação industrial, Internet das coisas e várias dessas tecnologias que hoje permeiam o nosso dia a dia.”

O professor da UFRGS agrega:

“Usar essas ferramentas não significa nos submetermos ao que elas dizem, significa […] que nós vamos usar a inteligência humana para domá-las, para domesticá-las, para servir aos nossos interesses, e não o contrário.”

Sputnik Brasil

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