Crise climática traz devastação à saúde das populações vulneráveis. Em reunião do comitê interministerial, governo começa a desenhar um plano setorial específico. Desastres climáticos recentes mostram que é preciso pressa para implementá-lo
Por Sérgio Rossi, para a coluna Saúde É Democracia
Há pelo menos 50 anos os principais países do globo têm se reunido e declarado comprometimento com o desenvolvimento e o equilíbrio saudável e sustentável do planeta. A primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano que ocorreu em 1972, em Estocolmo (Suécia), já apontava que havíamos chegado a “um momento da história em que devemos orientar nossos atos em todo o mundo com particular atenção às consequências que podem ter para o meio ambiente. Por ignorância ou indiferença, podemos causar danos imensos e irreparáveis ao meio ambiente da terra do qual dependem nossa vida e nosso bem-estar”.
Do início da década de 1970 até os dias atuais, muitos avanços foram observados na agenda ambiental e das mudanças climáticas, assim como na compreensão da saúde a partir dos seus processos de determinação social e ambiental. Diversos compromissos globais foram estabelecidos, organismos internacionais e entidades da sociedade civil têm construído uma agenda internacional comprometida com o enfrentamento das consequências das mudanças antrópicas provocadas no ambiente, em virtude do modelo capitalista de produção e desenvolvimento.
Ao longo desse período, podemos destacar a Agenda 21 (fruto da Rio-92); a definição dos Objetivos do Milênio, estabelecidos no ano de 2000, na Cúpula do Milênio das Nações Unidas, posteriormente os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS ou Agenda 2030), estabelecidos em 2015, assim como o Plano Nacional de Mudanças Climáticas.
No Brasil, no âmbito do SUS, em 2003 tivemos a criação da Secretaria de Vigilância em Saúde e a incorporação da Vigilância em Saúde Ambiental no organograma do Ministério da Saúde, através da Coordenação-Geral de Vigilância em Saúde Ambiental.
Segundo a Política Nacional de Vigilância em Saúde1, a Vigilância em Saúde Ambiental é definida como:
conjunto de ações e serviços que propiciam o conhecimento e a detecção de mudanças nos fatores determinantes e condicionantes do meio ambiente que interferem na saúde humana, com a finalidade de recomendar e adotar medidas de promoção à saúde, prevenção e monitoramento dos fatores de riscos relacionados às doenças ou agravos à saúde.
Ou seja, a Saúde Ambiental, que até então esteve relacionada, quase exclusivamente, ao saneamento e qualidade da água, como apontam Câmara e Tambellini, incorporou outras questões que envolvem poluição química, pobreza, equidade, condições psicossociais e a necessidade de um desenvolvimento sustentável que possa garantir uma expectativa de vida saudável para as gerações atuais e futuras (2003, p. 96)2.
Ao passo que tais avanços foram observados também registramos grandes tragédias e desastres socioambientais ao longo desse período. Em 2011, na região serrana do estado do Rio de Janeiro, ocorreu a maior tragédia climática já registrada no país. No início daquele ano, o volume das chuvas na região provocou uma série de deslizamentos de terra e enchentes que matou mais de 900 pessoas e deixou cerca de 100 desaparecidas.
Nos anos de 2015 e 2019, o país foi palco das maiores tragédias envolvendo barragens de mineração já registradas. A primeira delas, ocorrida em 5 de novembro de 2015, devido ao rompimento da barragem de rejeitos de mineração da mineradora Samarco, localizada no município de Mariana/MG.
O desastre despejou mais de 30 milhões de m3 de rejeitos de mineração no meio ambiente, causando um impacto nunca registrado na vida de milhares de pessoas ao longo de todo o Rio Doce até o litoral capixaba. A lama de rejeitos devastou completamente os distritos históricos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, em Mariana/MG, invadiu a sede do município de Barra Longa/MG e percorreu todo o Rio Doce até desaguar no oceano Atlântico a partir do litoral do Espírito Santo.
Populações ribeirinhas, quilombolas, indígenas, pescadores e outros povos e comunidades tradicionais perderam suas fontes de subsistência, seus modos de vida, suas tradições, meios de trabalho e laços sociais e comunitários. Os impactos sociais, ambientais e ecossistêmicos esgarçaram o tecido social e a vida nesses territórios, de modo que as estimativas mais otimistas projetam décadas para um processo de recuperação e reparação.
Em 2019, novamente Minas Gerais foi palco de uma tragédia anunciada, a barragem B1 da mina Córrego do Feijão, de propriedade da Vale, localizada em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte, rompeu despejando mais de 12 milhões de m3 e matando mais de 270 pessoas, a absoluta maioria de trabalhadores da própria mineradora. Assim como no desastre da Samarco, a vida de milhares de pessoas ao longo do Rio Paraopeba, num total de 26 municípios mineiros, foi severamente impactada.
Eventos como as tragédias acima mencionadas, são as rupturas ou fraturas de um contexto que tem a sua origem determinada por processos sociais, econômicos e políticos que configuram territórios e populações expostas a riscos e condições de vida precárias.
Ainda que os desastres climáticos ou de origem tecnológica possam afetar toda a população de um território, são determinados grupos populacionais e espaços geográficos mais vulnerabilizados que sofrem, de forma mais grave e acentuada, com os impactos e danos de tais eventos.
As pessoas que não têm acesso ao Estado e a suas políticas públicas são as mais impactadas pelos processos sistêmicos da exposição e sobreposição de riscos socioambientais e condições de vida precárias a que estão sistematicamente submetidos.
Todavia, ainda que o debate nos centros de pesquisa e campo das políticas públicas esteja cada vez mais orientado sob uma perspectiva transversal e multidisciplinar na compreensão das relações e interações entre saúde e meio ambiente, as complexidades envolvidas nessas relações, associadas às pressões (econômicas e políticas) decorrentes dos modelos de “desenvolvimento” e produção adotados, têm atravessado e barrado a estruturação de uma agenda mais efetiva e concreta para enfrentar os impactos e iniquidades que as bases desse modelo de desenvolvimento insustentável tem gerado.
A desregulamentação dos processos de licenciamento ambiental, materializada no Projeto de Lei 3729/2004, a poluição atmosférica e a liberação desenfreada do uso de agrotóxicos, que conta, inclusive, com incentivos fiscais e o patrocínio do legislativo federal, através do “Pacote do Veneno”, são apenas alguns desses fatores que impactam e afetam a saúde e a vida das populações cotidianamente.
Segundo o Dossiê “Impacto dos Agrotóxicos na Saúde”, elaborado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), 64% dos alimentos produzidos no país estão contaminados por agrotóxicos; entre 2007 e 2014 foram registradas 34.147 notificações de intoxicações por agrotóxicos no Sistema Único de Saúde (SUS) e o aumento no uso de agrotóxicos entre 2000 e 2012 registrou uma escalada de 288%. Na direção oposta a esses números e impactos na saúde da população brasileira, a indústria de agrotóxicos no país registrou, somente em 2014, um lucro de U$ 12 bilhões de dólares.
A poluição atmosférica, definida em 2019 pela Organização Mundial da Saúde (OMS)3 como o maior risco ambiental à saúde, tem como principal causa a queima de combustíveis fósseis, mas também está diretamente associada às fontes industriais que expõem as populações e territórios nos entornos de grandes polos industriais a graves impactos e danos à sua saúde, como é o caso, por exemplo, de Volta Redonda/RJ e Ilha de Maré/BA.
Como aponta Fróes-Asmus (2020), os processos de produção e o nosso modelo de desenvolvimento industrial trouxe como uma de suas consequências perversas para a saúde o aumento da exposição das populações humanas a substâncias de diferenciados graus de toxicidade, em todas as suas etapas, ou seja, desde a extração das matérias primas, sua produção propriamente dita e resíduos decorrentes, e o consumo dos produtos (p.7)4.
Como destaca a autora, estamos inseridos em um contexto em que aos riscos ambientais tradicionais, como ausência de água potável e saneamento básico, somam-se novos riscos ambientais como a poluição atmosférica, as alterações climáticas e a exposição a resíduos tóxicos, em que as populações e comunidades que apresentam os mais baixos indicadores socioeconômicos e de qualidade de vida são as mais expostas e as que mais sofrem as consequências e danos mais graves e acentuados dessa exposição.
Desafios e possíveis saídas para a construção de uma agenda integrada Saúde e Ambiente
Nos últimos 7 anos, desde a destituição da presidenta Dilma Rousseff, o Brasil assistiu a um acelerado desmonte das políticas públicas e mecanismos de proteção ambiental e social conformados desde a Constituição Federal de 1988. A “boiada” passou e se consolidou, encontrando terreno fértil para o desmonte estatal na agenda ultraliberal do governo Bolsonaro.
O contexto atual nos impõe o desafio de pensarmos saídas para a crise do neoliberalismo, mas como nos adverte o pesquisador Leonardo Castro, o pós-neoliberalismo não será o retorno nostálgico ao estado social ou ao desenvolvimentismo do pós Segunda Guerra Mundial. A crise atual é também uma crise de alternativas. Encontrar saídas é o grande desafio do pensamento prospectivo.
Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável estabeleceram diversas metas e objetivos complexos, muitos dos quais ainda longe de serem alcançados, mas que oferecem uma agenda capaz de representar, face à complexidade da transformação do nosso modelo de desenvolvimento econômico, um caminho para a construção de um modelo de desenvolvimento mais inclusivo, sustentável e que promova justiça e equidade social.
No campo das relações e interações entre saúde e ambiente, o objetivo 3, mais especificamente a meta 3.9 – Até 2030, reduzir substancialmente o número de mortes e doenças causadas por produtos químicos perigosos e a poluição e contaminação do ar, água e solo é aquela que traduz de forma mais explicita essas relações e interações.
Diversas ações e políticas públicas precisam ser estruturadas e organizadas tanto na área da saúde como no meio ambiente para que possamos, em 2030, assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades (Objetivo 3).
Um primeiro passo para esse processo, talvez, tenha acontecido na última quinta-feira (14/9), quando o governo federal realizou a primeira reunião do Comitê Interministerial sobre Mudanças do Clima (CIM), desde a sua reformulação. Das resoluções retiradas na reunião, destaca-se a constituição de grupo específico para atualizar a Política Nacional sobre Mudanças do Clima, incluídos os planos setoriais de mitigação e adaptação à mudança do clima e, entre eles, o Plano Setorial da Saúde.
Todavia, no âmbito do próprio SUS, aguardamos, desde 2005, a efetivação de uma Política Nacional de Saúde Ambiental. A implementação efetiva dessa política possibilitará, junto às equipes de saúde nos territórios, o fortalecimento, capacitação e qualificação de todos os profissionais de saúde, sejam eles da assistência ou da vigilância; o estabelecimento e a aplicação de incentivo e financiamento específico de ações, políticas e programas na área, que fortaleçam e promovam a construção de agendas intra e intersetoriais integradas; a produção de conhecimento, assim como a geração e análise de dados e informações estratégicas e integradas em Saúde Ambiental.
Sem que tenhamos instrumentos normativos capazes de dar capilaridade e fortalecimento a área, as possibilidades de transformação do atual contexto ficam cada vez mais distantes.
1 https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2018/Reso588.pdf
2 https://bvsms.saude.gov.br/bvs/is_digital/is_0104/pdfs/IS24(1)005.pdf
3 https://brasil.un.org/pt-br/82146-oms-define-10-prioridades-de-sa%C3%BAde-para-2019
4 https://saudeamanha.fiocruz.br/wp-content/uploads/2021/10/Froes_Asmus-CIR_Exposi%C3%A7%C3%A3o-a-subst%C3%A2ncias-qu%C3%ADmicas_TD73.pdf