Há 40 anos, no dia 25 de abril de 1984, uma votação no Plenário da Câmara dos Deputados frustrou a expectativa de grande parte da população brasileira, que esperava poder votar para presidente por meio de eleições diretas. Nesse dia, uma proposta de emenda à Constituição para restaurar a eleição direta para presidente a partir de 1985, depois de 20 anos de ditadura militar, foi rejeitada pelos parlamentares.
A emenda, apresentada pelo então deputado federal Dante de Oliveira (PMDB-MT), teve 298 votos a favor, 65 contra, três abstenções e 113 ausências. Por ser uma emenda, era preciso 320 votos favoráveis para ser encaminhada ao Senado Federal.
“Esses 22 votos que a emenda não teve para ser aprovada foram decisivos para jogar a população numa tremenda depressão, que a gente via pelas ruas”, lembra a historiadora Vania Cury. Apesar do clima de “velório” após a rejeição da emenda, o sentimento era de esperança, segundo ela.
Cerco a Goiânia, Brasília e cidades do Entorno
Uma semana antes da votação da emenda Dante de Oliveira, o general presidente João Baptista Figueiredo decreta estado de emergência no Distrito Federal, em Goiânia e em nove municípios do entorno da capital do país. A medida tem o objetivo de isolar Brasília, evitar manifestações pró-Diretas e intimidar o Congresso Nacional. O direito de reunião é suspenso e se estabelece a censura aos noticiários de rádio e TV.
O presidente do PMDB, Ulysses Guimarães, em discurso enérgico, condena “o ato ditatorial que afronta a nação”. O presidente do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, diz que “o governo assinou seu atestado de óbito”. Um dia antes de decretar as medidas de emergência, o governo havia apresentado uma emenda constitucional marcando eleições presidenciais para 1988. Ulysses rejeitou a proposta, com apoio da maioria dos governadores de oposição.

Figueiredo nomeou como executor das medidas o comandante militar do Planalto, general Newton Cruz, que imediatamente estabeleceu o bloqueio das estradas. No dia seguinte, seriam presos seis pacifistas que jejuavam a favor das diretas em frente à Catedral de Brasília e dois jornalistas que estavam no local. Da mesma forma que havia feito no estado de emergência de 1983, na votação do decreto do arrocho salarial, o general Newton Cruz promoveu um espetáculo de autoritarismo e abuso do poder.
Na segunda-feira, 23 de abril, a pretexto de comemorar o aniversário do Comando Militar do Planalto, o general desfilou na Esplanada dos Ministérios montado sobre um cavalo branco, à frente de 6 mil militares e 116 tanques e carros de combate. No dia seguinte, a população de Brasília promoveria um buzinaço e o general reagiria chutando e chicoteando automóveis que passavam pela avenida. “Buzina agora seu filho da…” Apesar do general, as buzinas tocaram até a madrugada do dia 25, data da votação. Das janelas dos prédios, os moradores batiam panelas.
O Congresso Nacional foi cercado por policiais militares na véspera da sessão, mas isso não impediu que na manhã do dia 25 milhares de estudantes ocupassem o gramado em frente ao edifício. Deitados sobre a grama, escreveram com seus corpos a palavra de ordem Diretas-Já. Dentro do prédio, a votação se prolongou até as 2h da madrugada do dia 26, sem que o país pudesse acompanhar os discursos e os votos pelo rádio ou pela TV. As informações saíam do prédio apenas por telefone e por telex para as sedes de sindicatos e outras entidades em diversos pontos do país.

A emenda precisava de 320 votos (dois terços dos deputados) para ser aprovada. Alcançou 298, incluindo votos de 54 deputados do PDS. Houve 112 ausências, quase todas de parlamentares do partido do governo que tinham vergonha de votar contra as Diretas. Apenas 25 votaram “não”.
Mesmo derrotada, a campanha das Diretas determinou o completo isolamento político e social da ditadura militar que completara 20 anos naquele mês de abril de 1984. As oposições e os movimentos populares mostraram sua força. O partido oficial estava dividido. O regime se aproximava do fim, mas ainda apostava numa negociação política da transição.

“A conversa entre os líderes ali, entre as pessoas que participaram da campanha, era ‘não vamos deixar cair a peteca, vamos continuar lutando por eleições diretas’. Mas num primeiro momento acabaram concordando que o Tancredo [Neves] fosse o candidato para o colégio eleitoral”, lembra.
O jornalista Ricardo Kotscho, que acompanhou a votação, disse que, apesar da derrota da emenda, o assunto mexeu com o país. “De qualquer maneira, o movimento já era vitorioso, porque mobilizou o Brasil inteiro, inclusive a imprensa, que aos poucos foi entrando na cobertura”, disse, lembrando dos grandes atos públicos que aconteceram antes da votação.
Com a derrota da Emenda Dante de Oliveira, a primeira eleição de um presidente civil após a ditadura militar aconteceu no Colégio Eleitoral, formado pelos membros do Congresso Nacional e por delegados eleitos nas assembleias legislativas dos estados. O então líder da oposição, Tancredo Neves, superou o então deputado Paulo Maluf, apoiado pelo regime militar, por 480 votos contra 180.
Após a morte de Tancredo Neves, ainda antes da posse, o vice-presidente eleito José Sarney assumiu a Presidência do Brasil. Após a promulgação da Constituição, em 1988, o Brasil voltou a ter eleições diretas para presidente, com a eleição de Fernando Collor, em dezembro de 1989.
A derrota da Emenda Dante de Oliveira e o movimento pelas Diretas Já no país são tema do programa Caminhos da Reportagem, que será transmitido neste domingo (28), às 22h, na TV Brasil.
Participação popular

A votação da proposta de eleições diretas para presidente foi precedida de uma série de atos públicos, que ficaram conhecidos como a Campanha pelas Diretas Já. Em 25 de janeiro de 1984, mais de 300 mil pessoas se reuniram na Praça da Sé, em São Paulo, com mobilização de políticos, artistas, esportistas e trabalhadores de diversas categorias.
Um dos participantes foi o metalúrgico aposentado João Paulo Oliveira, que também ajudou a levar outras pessoas para o comício. “A gente vinha de ônibus, vinha de táxi, tinha gente que não tinha dinheiro para vir até a praça, e nós fazíamos vaquinha para essas pessoas virem aqui também”, lembra.
Com a proximidade da votação da emenda no Congresso Nacional, as manifestações populares ficaram mais lotadas. No dia 10 de abril de 1984, cerca de 1 milhão de pessoas participaram de um comício na Candelária, no centro do Rio de Janeiro, em um dos principais atos do movimento das Diretas Já.
A atriz Lucélia Santos, militante pela anistia dos presos políticos, também foi à Candelária naquele dia. “Todo o Brasil estava lá na Candelária naquele pôr do sol. Foi uma confluência de energias positivas, onde a arte, os artistas, eram parte efetivamente”, lembra a atriz, que tinha ficado conhecida pelo papel da protagonista da novela A Escrava Isaura, de 1976.
O último e maior comício das Diretas Já aconteceu no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, e contou com 1,5 milhão de participantes. O evento foi no dia 16 de abril de 1984, a nove dias da votação da emenda no Congresso.
“O comício do Anhangabaú, eu acho que foi o grande divisor de águas na história brasileira entre a ditadura e a democracia. Foi a partir daquele dia que o Brasil estava voltando para a democracia”, avalia o jornalista Ricardo Kotscho, então repórter do jornal Folha de S.Paulo em 1984 e rodou o país cobrindo as manifestações pelas eleições diretas.

Entre os participantes no ato também estava o então jogador do Corinthians Walter Casagrande Júnior, um dos principais nomes da chamada Democracia Corintiana, movimento no qual jogadores e outros profissionais do time decidiam, no voto, questões como as regras da concentração e até a contratação de atletas. Ele conta a emoção que sentiu ao ir com outros jogadores ao comício e, mesmo sendo reconhecidos, o foco não era o time ou o futebol.
“Eu fiquei bastante emocionado já dentro do metrô, porque as pessoas reconheceram a gente e não falaram de futebol, e eu percebi que o foco e o pensamento de todos era o mesmo, pouco importava se eu, o Magrão [apelido do ex-jogador Sócrates], o Wladimir [ex-jogador], jogávamos no Corinthians, se o cara era gari, se o outro ali era secretário, se o outro trabalhava na padaria, se o outro é office boy. Ali dentro daquele metrô estávamos todos iguais, com o mesmo pensamento, com foco na nas diretas, na Emenda Dante de Oliveira”, lembra Casagrande.

* Com informações da Agência Brasil, site Memorial da Democracia e texto de Thiago Padovan e Ana Passos, da TV Brasil